É engraçado como os textos, crônicas, contos de Clarice vem
me chamando à atenção a cada dia que passa, ela tem um jeito único de escrever
e por mais leigo que a pessoa seja no assunto ele sabe disso, Clarice Lispector
era uma escritora que odiava ser vista através do rótulo “autora” ela nunca
assumiu ser “escritora” porque ela “só escrevia quando queria” ela não era uma
profissional e fazia questão de não ser, Clarice era aquela que em entrevista a
Júlio Lerner acendeu um cigarro e continuou a falar, o ato poderia muito bem
soar como esnobe, mas não, ela estava sendo somente ela mesma.
Clarice era uma mulher de autenticidade, ela não queria se
parecer com ninguém, Ela fazia e falava às coisas que vinham do mais profundo
dela mesma, “quando escrevo para adultos eu estou me comunicando com o mais
secreto dela mesma” quem foi essa mulher? Aquela que na única entrevista que
concedeu a TV se recusou a falar o nome da sua personagem do livro que acabara
de escrever, mas não se importou em contar o final... Ah Clarice, linhas me
faltam para descrever porque você me chama tanto a atenção, porque você é minha
maior fonte de inspiração e porque eu amo tanto ler e refletir os seus textos,
um dia ainda chegarei a um por cento de sua genialidade e se assim conseguir
serei o homem, escritor mais feliz do mundo.
Domingo, 20 de Julho de 2014, bem, nesse momento eu queria
está na rua sabe? Batendo perna por ai, jogando conversa fora ou na praça de
alimentação de algum shopping com alguns amigos ou comprando livros novos *---*
mas como estou cansado e sem dinheiro resolvi fazer uma postagem nova para o
blog, e enquanto reassistia pela enésima vez a entrevista que Clarice Lispector
concedeu a TV decidi apresentar a vocês que só conhece Clarice pelas frases do
facebook uma crônica que ela escreveu, geniosa, maravilhosa e qualquer outro
adjetivo que a possa descrever:
“Mineirinho”
“Eu não me lembro muito
bem, já foi a bastante tempo. Alguma coisa assim: o primeiro tiro o espanto, o
segundo tiro num sei o que, terceiro tiro coisa, o décimo segundo me atinge e o
décimo terceiro sou eu. Eu era... Transformei-me em Mineirinho mascarado pela
polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava o resto era
vontade de matar, era prepotência”.
Clarice Lispector,
sobre Mineirinho, em entrevista a Júlio Lerner.
Divirtam-se com esse espetáculo de letras e até a próxima
pessoal.
Bom domingo a todos, beijos com letras... #Fui
É, suponho que é em mim, como um dos
representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um
facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram
Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava
sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o
mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações
contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas
revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se
dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho
era perigoso e já matara demais; e, no entanto nós o queríamos vivo. A
cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com
alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu
sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas
tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais
do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a
que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha
maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me
deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a
repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me
salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e
com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu -
que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro.
E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu
sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é
o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o
modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de
vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo
de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu
dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências,
mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em
nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos
entendermos. Para que a casa não estremeça.
A violência rebentada em Mineirinho
que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça
aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se
erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado
inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito:
também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me
envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se
adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a
bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo,
porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai
de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca.
Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à
primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de
pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos
essenciais, baluartes de alguma coisa. E, sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse
de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque
teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse
que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um
homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa
cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que
nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está
mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o
seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso -
nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o
sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila,
mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.
Charles Nascimento - escritor caótico autor do livro ETERNO, sem qualquer compromisso com datas, odeia relógio e horários marcados aspirante a jornalista ou quem sabe enfermeiro, dividido por natureza, técnico em enfermagem nas horas vagas, odeia pessoas cem por cento decididas, afinal a dúvida faz parte da natureza humana. Amante de tudo que lhe faz culto, leitor voraz (claro) e apreciador (admirador) de tudo que Clarice Lispector escreveu, em tempos vagos prefere o silêncio do quarto e o som de curtas-metragens, ama um documentário e dorme enquanto assiste entrevistas de grandes pensadores, ouvir pessoas inteligentes a falar é sua principal motivação para continuar, amigos pra mim tem que ser mente aberta, odeia qualquer forma de preconceito ou discriminação, ditadura? Só em livros de história... Prazer, eu!
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